Aclamação de Amador Bueno

UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE PETROLINA

HISTÓRIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

PROFESSOR  GILSON ARAÚJO

 

O aclamado

 

Em sua primeira fala do trono durante a Assembléia Constituinte de 1823, D.Pedro I comentava os motivos que o tinham levado a São Paulo em setembro do ano anterior, ainda como príncipe regente do Brasil. Ele destacava aquele lugar como o primeiro no qual nossa independência foi proclamada, “no sempre memorável sítio da Piranga”, para em seguida dizer: “Foi na pátria do fidelíssimo, e nunca assaz louvado Amador Bueno de Ribeira, onde pela primeira vez fui aclamado Imperador.” (FALAS DO TRONO, 1889, p.14) Aproximadamente vinte e cinco anos mais tarde Francisco Adolfo de Varnhagen dedicava a D. Pedro II uma peça de teatro intitulada Amador Bueno ou A Coroa do Brasil em 1641, e escrevia em sua dedicatória: “Senhor: o assunto desta composição envolve o pensamento da unidade do Brasil em virtude da aclamação geral nele da Casa de Bragança – V. M. I., hoje representante desta casa e símbolo da integridade do Império, a honraria sobremaneira dignando-se de ser dela indulgente protetor. – Seja-o, Senhor! – E outorgue V. M. I., desta forma, sua alta proteção ao autor – De V. M. I. – súdito fiel e humilde. Beijando reconhecido a augusta mão do mecenas soberano que propiciamente acolheu o pensamento desta composição (…) do grande feito tradicional de 1641, que se associará para sempre à Coroa do Brasil.” (VARNHAGEN, 1858)

No discurso de D. Pedro I a terra de S. Paulo era valorizada enquanto lugar primeiro da independência por ter sido também a terra de Amador Bueno. Esta lembrança era feita em 1823, num tempo em que a libertação em relação a Portugal ainda era uma questão duvidosa em várias províncias, onde “brasileiros” e tropas portuguesas entravam em conflito. Por sua vez, na dedicatória da peça teatral, o Imperador do Brasil era visto como símbolo da integridade do Império. O historiador Varnhagen reconhecia em D. Pedro II o representante da casa dos Bragança, estabelecendo uma relação entre a unidade do território brasileiro e a autoridade do monarca. Tal observação era feita em meados do século XIX, após um conturbado período regencial repleto de idéias federalistas expressas em movimentos provinciais que colocavam em dúvida o poder central no país. Representava assim a antecipação da maioridade em 1840 uma volta ao princípio centralizador e à ordem promovida pela ação “pacificadora” das tropas imperiais nas províncias rebeldes. Esta relação entre o poder do soberano e a manutenção da integridade territorial era estabelecida pela figura enaltecida do Imperador e pela lealdade de seus súditos. Varnhagen relacionava a permanência desta autoridade unificadora no Brasil do século XIX ao passado colonial americano, em seu aspecto de sujeição ao rei português da dinastia Bragança, dinastia da qual descendia D. Pedro II. Tais idéias foram desenvolvidas pelo autor mediante a recuperação do exemplo dignificante de Amador Bueno.

Mas que história é esta recuperada pelo primeiro imperador, e trabalhada pelo visconde de Porto Seguro mais de dois séculos depois de acontecida? Embora permaneça até hoje presente na memória nacional, é ao mesmo tempo muito pouco compreendida. Em que espécie de contexto ela surgiu? Certamente as breves considerações aqui tecidas não conseguirão resolver as dúvidas referentes a um assunto tão controvertido na historiografia brasileira. No entanto, o episódio do vassalo paulista que preferiu a soberania portuguesa – em vez de comandar um movimento separatista – no momento da ascensão dos Bragança ao trono lusitano tem grande valor neste estudo.

O principal relato envolvendo a aclamação de Amador Bueno é o de Frei Gaspar da Madre de Deus, em suas Memórias para a História da Capitania de São Vicente. Acompanhemos o resumo de sua narrativa, a partir da chegada em São Paulo da notícia de que o duque de Bragança havia sido aclamado rei na capital São Vicente, com o nome de D. João IV.

Frei Gaspar escrevia que essa novidade fora um golpe duro para os espanhóis, que se achavam estabelecidos e casados na vila de São Paulo, vindos da Europa e das Índias Ocidentais. Eles desejavam conservar as povoações acima da Serra na obediência de Castela, “e não se atrevendo a manifestar seu intento, por conhecerem que seriam vítimas sacrificadas à cólera dos paulistas, (…) resolveram entre si usar de artifício”. (MADRE DE DEUS, 1975, p.138-141)

Os espanhóis achavam que a capitania de São Vicente “e quase todo o sertão brasílico” seriam reunidos à posse de Espanha, se os paulistas se desmembrassem de Portugal. Deste modo, “fingindo-se penetrados do amor ao país onde estavam naturalizados e do zelo do bem comum, propuseram aos seus amigos, parentes, aliados e a outros, um meio que lhes pareceu o mais seguro, para conseguirem os seus intentos: tal era o de elegerem um rei paulista; e ao mesmo tempo apontaram como o mais digno da Coroa a Amador Bueno de Ribeira”. Justificava-se a escolha do aclamado por ser ele “de qualificada nobreza e de muito respeito e autoridade pelos empregos públicos que havia ocupado e ainda exercia, pela sua grande opulência, pela roda de parentes, e amigos.” Os espanhóis então se teriam valido de todos os argumentos possíveis para persuadirem os “paulistas e europeus pouco instruídos”, que eles podiam não reconhecer por soberano um príncipe a quem ainda não tinham jurado obediência, “sem encargo de suas consciências, nem faltarem à obrigação de honrados e fiéis vassalos”; incentivaram a vaidade dos ouvintes, exagerando o merecimento dos paulistas e europeus, dizendo que suas qualidades pessoais e de nobreza “os habilitavam para maiores impérios”. Lembraram ainda os milhares de índios e escravos que controlavam, podendo formar “exércitos formidáveis” favorecidos pela situação de São Paulo, “tão vantajosa nesse tempo, que (…) bastaria lançarem-se pedras pela serra abaixo, para se retirarem os expugnadores”. Amador Bueno teria ficado pasmo ao ouvir estas proposições, lembrando aos demais “a obrigação que tinham de se conformarem com os votos de todo o Reino e a ignomínia de sua Pátria, se não reparasse a tempo com voluntária e pronta obediência o desacerto de tão criminoso atentado”. Mas a rejeição do eleito teria aumentado a vontade do povo “ignorante”, que chegou a ameaçá-lo de morte se não quisesse “empunhar o cetro”. Amador Bueno então, “fiel vassalo”, saiu de sua casa escondido com a espada na mão, caminhando apressado para o mosteiro de São Bento, em busca de refúgio. Mas “todos corriam após ele, gritando: viva Amador Bueno, nosso rei: ao que ele respondeu muitas vezes, em voz alta: viva o Senhor D. João IV, nosso rei e senhor, pelo qual darei a vida.” Chegando Amador Bueno ao mosteiro, fechou rapidamente as portas, mandando chamar os eclesiásticos mais respeitáveis, “e todos unidos ao dito Bueno fizeram compreender aos circunstantes que o Reino pertencia à Sereníssima Casa de Bragança e que dele se acharia esta em posse pacífica desde o dia da morte do cardeal rei D. Henrique, se a violência dos monarcas espanhóis não houvera sufocado o seu direito.” Os “fiéis portugueses” conduziram-se assim como deviam: todos “arrependidos do seu desacordo”, foram “cheios de gosto” aclamar solenemente D. João IV, com mágoa dos espanhóis, que “para não perderem as comodidades que tinham vindo procurar em S. Paulo”, prestaram também juramento de fidelidade ao mesmo rei. Frei Gaspar da Madre de Deus (1715-1800) viveu entre Santos, onde nasceu, Rio de Janeiro e São Paulo, tendo chegado ao cargo de abade provincial na capital do Vice-Reino em 1766. Interessado pela pesquisa histórica nos arquivos então existentes, foi autor de várias obras sobre as localidades nas quais habitou, sendo a mais significativa delas as suas Memórias (…) de São Vicente. Frei Gaspar exaltava nas memórias que escrevia o heroísmo dos primeiros povoadores vicentinos, ligados às mais expressivas famílias da capitania, das quais descendia o monge. Nesse sentido, geralmente eram buscadas origens nobres européias nesses principais troncos familiares. Esta tendência de valorização dos antepassados vicentinos segundo a lógica européia, e das aventuras bandeirantes seiscentistas no século XVIII, estava de acordo com o processo de sujeição dos paulistas à colonização portuguesa, principalmente depois do início da exploração do ouro nas Minas e a criação da capitania de São Paulo em 1720. Frei Gaspar era um eclesiástico de expressão na América portuguesa em meados dos setecentos, e como tal recuperava este passado paulista não somente destacando a sua “nobreza” de sangue e de valores, mas também a obediência daqueles habitantes às ordens vindas de Portugal. Desta forma é contado o episódio envolvendo a aclamação de Amador Bueno em São Paulo, 1641. Obra dos espanhóis, que tramaram com “artifício” para iludir os “paulistas e europeus pouco instruídos” que, mesmo apoiando a aclamação, foram considerados pelo memorialista “honrados e fiéis vassalos”, ou “fiéis portugueses”, permanecendo, depois da recusa de Amador Bueno, “arrependidos do seu desacordo”.

Em seu afã na busca e no estudo das origens, Frei Gaspar correspondia-se com o amigo e primo Pedro Taques de Almeida Leme (1714-1777), que ocupou vários cargos administrativos e militares de relativa expressão entre São Paulo e Minas a partir de 1737, e era igualmente identificado com o enaltecimento do passado. Taques construiu a sua Nobiliarquia Paulistana , a partir das informações encontradas em cartórios seculares e eclesiásticos da capitania de São Paulo e suas vizinhas. Como parte desta genealogia compôs em 1742 a história dos Buenos, narrando o feito da aclamação: “Foi Amador Bueno vassalo de tanta honra e fidelidade que, enchendo-se na sua maior opulência de cabedais, respeito e estimação, com dois genros castelhanos, ambos irmãos e fidalgos ambos, que tinham poderoso séquito dos espanhóis, casados e estabelecidos em S. Paulo, com aliança das famílias mais principais da capitania; não podendo estes castelhanos suportar a gloriosa e feliz aclamação do Sr. Rei D. João IV de Portugal, e 2º do nome entre os sereníssimos duques de Bragança, formaram um corpo tumultuoso, e as vozes aclamavam por seu rei a Amador Bueno, intentando vencer com este bárbaro e sacrílego atentado a constância do honrado vassalo Amador Bueno, para deste modo evitarem a obediência e o reconhecimento de que se devia dar ao legítimo rei e natural senhor, ficando S. Paulo com a voz de Castela, assim como estiveram os moradores da Ilha Terceira até o ano de 1583 com a do Sr. D. Antônio, Prior do Crato, que se achava refugiado em França (…) Tinha o corpo da rebelião adquirido força nos autores dele, os castelhanos, que por si e suas famílias avultavam em grande número. (…) Porém Amador Bueno, sem temer o perigo nem deixar prender-se da indiscreta lisonja, com que lhe ofereciam o título de rei para o governo dos povos da capitania de S. Paulo, sua pátria, soube desprezar, e ao mesmo tempo repreender a insolente aclamação, desembainhando a espada e gritando a vozes: – ‘Real, real por D. João IV, rei de Portugal’ – Salvou a vida do perigo em que se viu pelo corpo desta horrorosa sedição, recolhendo-se ao sagrado mosteiro de S. Bento, acompanhado dos leais portugueses europeus e paulistas até ficar em sossego o inquieto ânimo dos castelhanos que tinham fomentado o tumulto. Nesta ação deu inteiramente créditos de si a incontrastável lealdade deste vassalo paulista.” (LEME, 1980, p.76-78) De forma mais enfática ainda do que no relato de Frei Gaspar, esta narrativa de Pedro Taques responsabiliza os espanhóis pela formação do “corpo tumultuoso” no “bárbaro e sacrílego atentado”, omitindo qualquer participação paulista na “horrorosa sedição”, sendo referidos somente os que apoiaram a recusa do aclamado, qualificados como “leais portugueses europeus e paulistas”. Aparecem destacadas também a “honra”, “fidelidade”, “lealdade” do vassalo Amador Bueno, ao lado de uma certa imprecisão ao mencionar-se a hipótese de sua aclamação, quando escreve “ficando S. Paulo com a voz de Castela”. É relevante também no relato a comparação deste evento com determinado episódio da história de Portugal, a aclamação de D. Antônio Prior do Crato, e a existência de uma fórmula comum de “aclamação” no império lusitano, caracterizada pela expressão “real, real”, que teria sido proferida por Amador Bueno.

 

 

Bibliografia:

 

ELLIS JÚNIOR, Alfredo. Amador Bueno e seu Tempo. São Paulo, Ind. Graf. Siqueira, 1948.

 

ELLIS JÚNIOR, Alfredo. Amador Bueno, o Rei de São Paulo. São Paulo, J. Fagundes, 1937.

 

FALAS DO TRONO (1823-1889). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional / Câmara dos Deputados,

1889.

 

TAUNAY, Affonso d’Escragnolle. Amador Bueno e Outros Ensaios. São Paulo, Imprensa

Oficial do Estado, 1943.

 

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Amador Bueno ou a Coroa do Brasil em 1641, drama

épico-histórico americano. Madrid, Imprenta Del Atlas, 1858.

 

 

 

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